O pai, aos 20 anos |
O passado dia 2 de Setembro, foi um dos dias mais tristes da minha vida. O meu pai partiu para sempre.
Chamaram-me para me poder despedir e todo tempo fiquei a fazer-lhe festas na cabeça, enquanto dizia palavras de amor. O quanto gostava dele, dos bons momentos que passámos juntos, dos imensos amigos/familiares que todos os dias ligaram a perguntar por ele.
Sei que ele tinha o desejo de reencontrar o amor da sua vida, a minha mãe, e também a minha irmã. Acreditava que no céu isso seria possível. E eu tento focar-me nisso, porque a tristeza é tão, mas tão grande... Mas sinto que ele estará num lugar melhor, junto de quem ama.
Nos últimos tempos andei com ele em vários médicos, fez imensos exames e análises. Mas estava cada vez mais fraco. Acabou por apanhar uma pneumonia bilateral e foi isso que o levou. Não foi de covid, mas sinto que esse maldito vírus me impediu de estar mais perto dele nos últimos momentos, no hospital. Excepto no último dia. Aí, com o devido equipamento de proteção, pude estar com ele. Não sei sequer se me ouvia, mas fui-lhe dizendo palavras de amor...
Com alguns dos seus amigos (é o que está sentado à direita) |
O meu pai, para ser franca, teve uma vida extremamente difícil. Trazia uma tristeza nele, que por vezes me contagiava. Chegava a fazer-me mal. Mas, eu tentava compreender.
A mãe dele era uma querida, mas o pai, infelizmente, após uns negócios mal sucedidos, começou a beber. Era agressivo e parecia que só trazia raiva dentro dele. Agredia a minha avó, dava pontapés na panela do jantar. Não foram poucas as ocasiões em que tiveram de dormir em casa de vizinhos.
O meu pai, o mais novo dos irmãos, tinha o sonho de ser cientista. Mas ao contrário dos primos que puderam estudar, o meu pai não pôde. Simplesmente porque o pai desperdiçava todo o dinheiro em bebida e os filhos tiveram de trabalhar, desde cedo, para ajudar a mãe. O meu pai só fez a quarta classe e a minha querida tia N. (a mais velha e otimista dos irmãos), nem sequer foi à escola. No dia em que o meu avô faleceu, a sensação foi quase de alívio... é triste dizê-lo, mas foi assim.
O que é curioso é que os manos, dois rapazes e duas raparigas, foram sempre muito unidos e nenhum deles teve problemas com a bebida.
Na companhia dos amigos, o meu pai também era mais feliz. Falava-me dos bailes, das miúdas, das cantorias (o meu pai cantava muito bem). Também guardava com saudades o tempo do serviço militar, onde fez vários amigos. Ele conduzia carros de combate e o ano passado oferecemos-lhe uma miniatura do modelo que ele conduzia. Impressionante como aquilo lhe trazia boas recordações, algumas delas bem engraçadas.
Entretanto ele e a minha mãe apaixonaram-se. Um amor tão lindo. Tão puro. Certo dia, era eu pequena, e encontrei um monte de cartas lá em casa. Abri a primeira e o meu pai chamava alguém de "minha querida"... não li e entreguei à minha mãe. Eram imensas cartas de amor que eles haviam trocado na juventude. Tinham tanto em comum... Ambos amavam música (a minha mãe também tinha uma voz lindíssima) e a Natureza. Ele parecia uma enciclopédia das árvores. Conhecia tantas e fazia com cada experiência (para nós ter uma árvore no quintal que fosse metade pessegueiro, metade ameixieira, era uma coisa perfeitamente normal). A minha mãe, por sua vez, adorava flores. Comprava revistas de flores e havia vasos e jarras por toda a casa.
Sempre se deram bem. Sempre foram unidos.
Entretanto casaram e tiveram uma filha, a minha irmã. Muito meiguinha e muito inteligente. Convidaram para padrinho o melhor amigo do meu pai, que por acaso era irmão da minha mãe.
Os anos passaram felizes. Até que começaram a suceder uma série de tragédias.
A minha mana estava a brincar com a sua amiguinha e prima, a filha mais nova da tia N. Entretanto ela atravessou a rua para ir buscar um lanche. Mas uma mota apanhou-a e a minha mana viu a prima morrer à sua frente. Foi uma enorme tragédia.
Passado pouco tempo, em Abril de 1978, o meu pai perdeu o melhor amigo, devido a um aneurisma. No funeral, uma vidente chegou-se junto deles e disse-lhes que poderiam estar tristes, mas que uma tristeza ainda maior aconteceria nesse ano. Que mensagem arrepiante! O ano passou triste com todas aquelas perdas. Mas no dia de Natal, aconteceu a pior das dores que um pai pode sentir. A minha irmã estava com o primito de 3 anos (filho do padrinho que havia falecido) e com a sua outra melhor amiga. Veio entretanto um carro, com uma jovem condutora que tinha bebido, em direção a eles. A minha irmã empurrou o primo salvando-o. A amiga partiu um braço e a minha irmã morreu num helicóptero a caminho de Lisboa. Foi uma dor tão grande, mas tão grande, que os meus pais andaram numa tristeza inimaginável.
Entretanto, com o meu pai quase a fazer 41 anos, nasci eu. Sei que toda a gravidez foi uma grande alegria. Então quando perceberam que era uma menina mais felizes ficaram. Eu não era para ter nascido, mas sei que vim trazer uma luz à escuridão em que se encontravam.
Tivemos momento felizes juntos. Com o meu pai a contar-me histórias para adormecer, a jogar badminton na rua, a empurrar-me num baloiço (feito por ele mesmo), a ver o MacGyver comigo, ou a passear no pinhal de Leiria quando íamos passar férias em Monte Real.
Mas, novamente, nem tudo foi fácil. A verdade é que fui uma criança bastante doente. Estive ou 7 ou 9 vezes (não lembro ao certo) internada no hospital, com problemas pulmonares. Por vezes, quando estava mal, nem conseguia dormir com dores no peito e aquela falta de ar. Então ele deitava-se ao meu lado e fazia-me festinhas na cabeça (como eu fiz da última vez que estive com ele) e eu adormecia.
Com o passar do tempo eu melhorei. Mas justo nessa altura ficou mal a minha mãe. Acabou por falecer de cancro. Eu tinha acabado de fazer 13 anos. No último dia que estive com ela, recordo-me de ela me dizer "É muito triste! Não pude ver os filhos da tua irmã, porque ela morreu. E agora não poderei ver os teus, porque morro eu." E partiu... O meu pai andou numa tristeza profunda.
E eu também. Era tudo muito pesado. Tudo muito triste. Na altura caí numa depressão. Provavelmente ele também, mas só eu recebi tratamento.
Depois disto, com todo o meu apoio, ele voltou a casar. Os primeiros anos foram alegres, com passeios e momentos de confraternização com a família da minha madrasta. Mas mesmo assim, a tristeza não o deixou. Eles não eram tão parecidos e o meu pai estava muito marcado pela dor.
Quando a neta nasceu, aquilo foi uma grande alegria para ele. E posso dizer que até ela ir para o Jardim-Escola ele foi o grande amigo da minha filha. Adoravam-se um ao outro.
Mas a tristeza na minha família e ansiedade é uma coisa tão forte, que talvez (ou melhor, de certeza) foi por isso que me dediquei a estudar a "felicidade". Queria deixar outro legado aos meus filhos. Queria mais alegria nas nossas vidas.
Ultimamente, o meu pai não era capaz sequer de disfarçar a tristeza. E a recusa em tratar a depressão há mais tempo também não ajudou. Escrevia poemas tristes, em que falava do desejo de reencontrar a minha mãe (o grande amor da sua vida, como ele dizia) e a minha irmã no céu. Mas também registava fados que tinha tudo a ver com o seu estado de espírito. O primeiro que registou no seu caderno, foi o "Saudades trago comigo" do Camané. Tem tudo a ver com o que ele sentia.
A mãe dele era uma querida, mas o pai, infelizmente, após uns negócios mal sucedidos, começou a beber. Era agressivo e parecia que só trazia raiva dentro dele. Agredia a minha avó, dava pontapés na panela do jantar. Não foram poucas as ocasiões em que tiveram de dormir em casa de vizinhos.
O meu pai, o mais novo dos irmãos, tinha o sonho de ser cientista. Mas ao contrário dos primos que puderam estudar, o meu pai não pôde. Simplesmente porque o pai desperdiçava todo o dinheiro em bebida e os filhos tiveram de trabalhar, desde cedo, para ajudar a mãe. O meu pai só fez a quarta classe e a minha querida tia N. (a mais velha e otimista dos irmãos), nem sequer foi à escola. No dia em que o meu avô faleceu, a sensação foi quase de alívio... é triste dizê-lo, mas foi assim.
O que é curioso é que os manos, dois rapazes e duas raparigas, foram sempre muito unidos e nenhum deles teve problemas com a bebida.
Na tropa, no tempo em que conduzia carros de combate (é o 2.º a contar da esquerda) |
Num casamento (é o de chapéu lá atrás, pois estava de luto pelo seu pai e na terra, era tradição usar esse vestuário) |
Sempre se deram bem. Sempre foram unidos.
Entretanto casaram e tiveram uma filha, a minha irmã. Muito meiguinha e muito inteligente. Convidaram para padrinho o melhor amigo do meu pai, que por acaso era irmão da minha mãe.
Os anos passaram felizes. Até que começaram a suceder uma série de tragédias.
A minha mana estava a brincar com a sua amiguinha e prima, a filha mais nova da tia N. Entretanto ela atravessou a rua para ir buscar um lanche. Mas uma mota apanhou-a e a minha mana viu a prima morrer à sua frente. Foi uma enorme tragédia.
Passado pouco tempo, em Abril de 1978, o meu pai perdeu o melhor amigo, devido a um aneurisma. No funeral, uma vidente chegou-se junto deles e disse-lhes que poderiam estar tristes, mas que uma tristeza ainda maior aconteceria nesse ano. Que mensagem arrepiante! O ano passou triste com todas aquelas perdas. Mas no dia de Natal, aconteceu a pior das dores que um pai pode sentir. A minha irmã estava com o primito de 3 anos (filho do padrinho que havia falecido) e com a sua outra melhor amiga. Veio entretanto um carro, com uma jovem condutora que tinha bebido, em direção a eles. A minha irmã empurrou o primo salvando-o. A amiga partiu um braço e a minha irmã morreu num helicóptero a caminho de Lisboa. Foi uma dor tão grande, mas tão grande, que os meus pais andaram numa tristeza inimaginável.
Com outro amigo e a sua adorada bicicleta, pois ele adorava pedalar (é o mais alto, à direita) |
Entretanto, com o meu pai quase a fazer 41 anos, nasci eu. Sei que toda a gravidez foi uma grande alegria. Então quando perceberam que era uma menina mais felizes ficaram. Eu não era para ter nascido, mas sei que vim trazer uma luz à escuridão em que se encontravam.
Tivemos momento felizes juntos. Com o meu pai a contar-me histórias para adormecer, a jogar badminton na rua, a empurrar-me num baloiço (feito por ele mesmo), a ver o MacGyver comigo, ou a passear no pinhal de Leiria quando íamos passar férias em Monte Real.
Mas, novamente, nem tudo foi fácil. A verdade é que fui uma criança bastante doente. Estive ou 7 ou 9 vezes (não lembro ao certo) internada no hospital, com problemas pulmonares. Por vezes, quando estava mal, nem conseguia dormir com dores no peito e aquela falta de ar. Então ele deitava-se ao meu lado e fazia-me festinhas na cabeça (como eu fiz da última vez que estive com ele) e eu adormecia.
Com o passar do tempo eu melhorei. Mas justo nessa altura ficou mal a minha mãe. Acabou por falecer de cancro. Eu tinha acabado de fazer 13 anos. No último dia que estive com ela, recordo-me de ela me dizer "É muito triste! Não pude ver os filhos da tua irmã, porque ela morreu. E agora não poderei ver os teus, porque morro eu." E partiu... O meu pai andou numa tristeza profunda.
E eu também. Era tudo muito pesado. Tudo muito triste. Na altura caí numa depressão. Provavelmente ele também, mas só eu recebi tratamento.
Depois disto, com todo o meu apoio, ele voltou a casar. Os primeiros anos foram alegres, com passeios e momentos de confraternização com a família da minha madrasta. Mas mesmo assim, a tristeza não o deixou. Eles não eram tão parecidos e o meu pai estava muito marcado pela dor.
Quando a neta nasceu, aquilo foi uma grande alegria para ele. E posso dizer que até ela ir para o Jardim-Escola ele foi o grande amigo da minha filha. Adoravam-se um ao outro.
Mas a tristeza na minha família e ansiedade é uma coisa tão forte, que talvez (ou melhor, de certeza) foi por isso que me dediquei a estudar a "felicidade". Queria deixar outro legado aos meus filhos. Queria mais alegria nas nossas vidas.
Ultimamente, o meu pai não era capaz sequer de disfarçar a tristeza. E a recusa em tratar a depressão há mais tempo também não ajudou. Escrevia poemas tristes, em que falava do desejo de reencontrar a minha mãe (o grande amor da sua vida, como ele dizia) e a minha irmã no céu. Mas também registava fados que tinha tudo a ver com o seu estado de espírito. O primeiro que registou no seu caderno, foi o "Saudades trago comigo" do Camané. Tem tudo a ver com o que ele sentia.
"Saudades trago comigo
Do teu corpo e nada mais
Pois a lei por que me sigo
Não tem pecados mortais
Talvez tu queiras saber
Porque em vida já estou morto
São apenas, podes crer,
As saudades do teu corpo
E tu que sentes por mim
Desde essa noite perdida
Sentes esse frio em ti,
Que eu sinto na minha vida?
Eu sei que o teu corpo
Há-de sentir a falta do meu
Por isso eu tenho a saudade
Que o meu corpo tem do teu."
Sinto tanto por tudo ter sido assim. Sinto por tudo o que ele passou. Sinto a saudade que deixou. Mas também sinto que hoje, certamente está mais feliz, sem dor de corpo e de alma, junto dos seus entes queridos.
Pai, até um dia... que agora finalmente estejas em paz.
Fotos: Acervo pessoal do meu pai
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"A Felicidade é o Caminho" também está aqui:
.... =(´
ResponderEliminarum abraço muito apertado Mafalda!
Deus te ajude a encarar tudo isto e a continuar a passar felicidade e amor aos teus!
Li com carinho e sentimento o seu comovente post! Sei perfeitamente colocar-me no seu lugar. E por tal razão apenas lhe deixo uma mensagem de força... De certeza que estará todos os dias a protegê-la! 🙏🙏
ResponderEliminar-
Sonhava ser ...
-
Beijos, e um excelente dia
Mafalda os meus sinceros sentimentos.
ResponderEliminarQue bonita homenagem, e que história a tua!
A ti é de louvar a escolha que fizeste de não desistir de ser feliz, bem hajas.
O coração aperta ao ler o que escreveste mas os teus pais e a tua irmã onde quer que estejam estarão com certeza felizes por ti.
Abraço grande
Lulu
Que lindo,mas comovente texto! Há vidas muito difíceis, sem dúvida! Nem imaginamos quanto! 😒
ResponderEliminarFelicito-te por teres tentado e conseguido inverter esse padrão familiar! Parabéns! Que consigas sempre ser um exemplo de coragem, determinação e resiliência. Admiro os teus artigos sobre a felicidade! Bem hajas!
E, que Deus te ajude a suportar a dor da perda do teu pai.
Beijinhos
Mafalda que homenagem tão bonita, sei que teu pai, mãe e mana estão num lugar lindo r felizes por terem uma filha e mana como tu... Ele contava muitas histórias dele quando esperávamos nossos pequenos e adorava ouvi-lo com grande admiração! Era um grande Homem... Força linda e se precisares estou cá! Beijinhos grandes com carinho
ResponderEliminarSinto muito Mafalda. Envio-te um grande abraço com a esperança de te reconfortar um bocadinho neste momento de dor. Post emocionante! Que Deus o receba na sua infinita Glória e que permaneça em paz junto da tua mãe e irmã. Beijinhos
ResponderEliminar😢
ResponderEliminarForça!
Bj
Mafalda deixo os meus sinceros pêsames. Lamento a perda! Grata por partilhares um texto tão bonito e honroso.
ResponderEliminarOlha deixo-te uma sugestão de leitura, que te pode ajudar a ultrapassar este momento 'Sinais' de Laura Lynne Jackson. CORAGEM querida!
Muita muita força!!! Beijinhos
ResponderEliminarUm abraço muito forte...coragem e força.
ResponderEliminarUm beijinho de coragem e muita força. Foca-te na felicidade diária, nas pequenas e boas coisas do dia a dia, só isso vale a pena, a vida é muito curta. Uma historia triste a da tua familia, vamos lá mudar a continuação desta tua vida boa e feliz!!!
ResponderEliminarOs meus sentimentos mais sinceros
ResponderEliminarTem sido uma fonte de inspiraçao para muitos.
Um abraço muito apertado 🌺
Silvia